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Notícia

Burnout: a “doença” que tem dono

A condição “científica” do burnout é, no mínimo, bastante complicada – ao meu ver, insustentável.

A condição “científica” do burnout é, no mínimo, bastante complicada – ao meu ver, insustentável. Em meu livro apresento argumentos que acredito serem suficientes, cada um deles, isoladamente, para evidenciar que não é possível considerar esse fenômeno uma doença. Vejamos alguns:

  • O MBI (Maslach Burnout Inventory), questionário usado em 93% das pesquisas no mundo, “diagnostica”, no mínimo, “burnout leve” em todo indivíduo que a ele responde, rigorosamente de acordo com as instruções do manual desse inventário. Mesmo que alguém responda que ficou estressado em meio a outras pessoas uma vez no ano, ganha o rótulo de “burnout leve”. Portanto, se 100% das pessoas sofrem da “doença”, ninguém sofre e o conceito perde toda a sua credibilidade.
  • O MBI engloba cerca de 30 categorias diagnósticas da Psiquiatria quando o escore resulta alto e lhes dá o nome de “burnout”. Quando o resultado é mais baixo, incontáveis experiências comuns do dia a dia também serão “diagnosticadas” como burnout. Ou seja: tanto transtornos mentais eventualmente graves quanto eventos comuns da vida vão todos para o “saco sem fundo” do MBI, ganhando o status de “doença”.
  • Na medida em que qualquer população pesquisada receberá o diagnóstico de burnout, não é possível concluir pelo MBI que você “não tem burnout”, o que produz outra das grandes idiossincrasias dessa teoria: seria a primeira “doença” para a qual não existem critérios de exclusão. Mas, se não existe critério de exclusão, não é possível falar em doença, logo…
  • Sob um viés clínico, Schaufeli, o principal teórico da área, compilou inacreditáveis 132 sintomas na literatura. Encontrei mais 8, o que resultaria numa “síndrome” com 140 sintomas e a elegeria como a mais bizarra e extraordinária “doença” da qual se tem notícia até hoje.

Assunto do qual não vejo ninguém falar, entretanto, é que o burnout tem dono. É isso mesmo: você pode falar livremente sobre burnout o quanto quiser, mas para falar para valer ou realizar pesquisas, não há como não recorrer ao MBI.

Vamos deixar de lado o mérito da questão de que questionários não fazem diagnósticos psiquiátricos. Se fizessem, bastaria ser alfabetizado para chegar a eles. Vamos, em vez disso, tratar de alguns aspectos do MBI dentro do tema do artigo. Maslach e Schaufeli dizem que “na prática, o conceito de burnout coincide com o MBI e vice-versa”. Schaufeli diz que “… burnout é o que o MBI mede” e Kristensen, crítico dinamarquês do MBI, dobra a frase e afirma: “Burnout é o que o MBI mede e o MBI mede o que é burnout.” Ou seja, são sinônimos.

O MBI é rigorosamente protegido por direitos autorais e não está disponível para livre discussão nos meios científicos. Se você quiser fazer uma pesquisa sobre burnout, deve, primeiro, comprar o Manual, que custa 50 dólares na versão on-line, para uso durante um ano. Em seguida, precisa comprar os questionários, que custam 2,50 dólares cada um.

Há cerca de 40 opções de pacotes à venda e os alertas sobre direitos autorais aparecem em todas as páginas do Manual. Os termos “compra” e “comprar” vicejam no texto e há também um aplicativo que “trabalha os dados da pesquisa para você”, informando, é claro, que também é pago. É necessária uma autorização por escrito da detentora dos direitos autorais, a editora californiana MindGarden Inc., que faz as vendas e representa os interesses de Maslach e demais co-autores. Também é necessário, além disso, explicar em detalhes o que vai fazer com o questionário deles.

Ao menos duas autoras brasileiras tiveram problemas com a editora americana ao publicar a tabela do MBI com seus 22 quesitos sem autorização: tiveram de fazer uma retratação e republicar o trabalho, que faz referência à tabela, que, todavia, não se encontra mais no texto retratado.

Mas o mais interessante vem agora: o burnout está na CID10 da OMS desde seu lançamento em 1990, ao contrário do que muitos acreditam. Na CID 11, foi deslocado de “Problemas com a organização do seu modo de vida” para “Problemas com o emprego e desemprego”, mantido, entretanto, na mesma categoria “Fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde”, o que não caracteriza doenças. Apesar de esclarecer que burnout não é uma condição médica, doença ou condição de saúde (link), a OMS acrescentou “síndrome”. Porém, muito mais do que isso, adotou o “conceito” de burnout do MBI, com seu “tripé multidimensional da síndrome” – exaustão, despersonalização e eficácia profissional. Ou seja, a OMS homologou o primeiro fenômeno humano coberto por direitos autorais e sujeito a pagamento.

Menos de um ano depois, Schaufeli parece ter se dado conta disso e publicou um artigo na África do Sul, onde reconhece: “a definição de burnout de Maslach e colegas é adotada [pela OMS], declarando implicitamente que o MBI deve ser usado para avaliar esse fenômeno ocupacional”.

Pode-se argumentar que há outros questionários, é verdade, mas quase ninguém os usa. Alguns são gratuitos, outros não. Schaufeli criou o seu próprio, chamado BAT – Burnout Assessment Tool. Custa 1,50 euro. Mas é muito difícil não recorrer aos donos no burnout, visto que o “market share” do MBI é de “apenas” 93%.

Além de todos os absurdos e inconsistências das teorias sobre burnout, os interesses comerciais envolvidos completam o quadro da “Síndrome de Burnout”. Como se não bastasse isso tudo, o viés da seletividade – ou censura – permite aos donos que só se fale “cientificamente” sobre burnout quem lhes interessa. Isso é ciência ou religião?